O barulho das rodas do carro estava ressoando nos seus ouvidos como uma sinfonia pouco convidativa, não gostava do asfalto. O conceito em si de algo que se liquefazia e solidificava em meio-ar para que pudéssemos pisar e locomover em cima lhe era estranho. Como se o líquido formado anteriormente por seres vivos únicos e majestosos hoje apenas servisse como uma base para que pudéssemos explorar e desprezar, sem que nunca se pudesse lhe dar o verdadeiro valor.
De todo modo, duvidava que seu sentimento fosse compartilhado com o taxista que o levava ao hotel que abriu na região. Tinha um nome deveras espalhafatoso: Hotel Fantástico, e parecia ser um local aconchegante, mas o que lhe interessava lá não era o aconchego e luxo, e sim a localização.
Estava lendo um livro digital qualquer que comprou na promoção. Era de um autor italiano do século XIX, havia esquecido seu nome, mas uma frase parecia ressoar em sua cabeça como as próprias vibrações da estrada: “O amor, para ser perfeito, devia ser como o rotífero: morrer num raio de sol, renascer numa gota de orvalho”.
Era isso que ele buscava naquele quarto de hotel, renascimento. E finalmente havia descoberto como fazer isso…
— Sir Crowley? Parece que a avenida está bloqueada pela PRF, vou pegar um desvio lateral, está tudo bem? Você disse que estava com pressa para um compromisso, não é?
Crowley… o nome de um ocultista famoso, era o nome que dera ao taxista para evitar usar seu nome de nascença. Mal sabia o pobre trabalhador que a polícia rodoviária estava fechando a avenida para pegá-lo.
Quanto ao compromisso, disse-lhe que era um contador. De certa forma era verdade, trabalhava com números também, mas não da forma que imaginava o funcionário público.
— Pode fazer como quiser, Mathias, o importante é chegar no hotel – respondeu com um sorriso despreocupado, afinal, após aquela noite, tudo estaria resolvido.
Não demoraram muito para chegar ao referido hotel. A estrutura era legal, tinha umas decorações festivas, com dragões, elfos, goblins e seja lá o que mais forem essas coisas de literatura fantástica que os comuns gostavam de cultuar.
Não prestou tanta atenção assim, mas tinha algo que o encucava: o número de seu quarto era auspicioso, 1609…
16 era o número da perfeição física, o quadrado do número 4, o auge da força material, e também significava a queda pela arrogância. Lembrava a ele da história da torre de Babel.
0 era o vazio, aquilo que existia antes da criação, antes da gênese, e antes do próprio universo, a ausência do essencial.
Mas o 9… o nove era um número que voltava sempre a ele, era o número da ressurreição, um número que demonstrava que podíamos voltar para tentarmos sempre, e isso o deixava esperançoso. Como se o próprio número de seu quarto contasse sua história: ele atingiu o auge de poder no passado, devido à sua arrogância ele caíra, passou tanto tempo no limbo, perdido. E agora… ele iria renascer, mas não só ele.
Agradeceu ao taxista e pegou sua mochila preta que estava no porta malas do carro. A viagem já havia sido paga previamente, então ele já se dirigiu ao saguão.
Novamente, deu o nome falso assim como os documentos falsos para a recepcionista de olhar perdido e distante que acabou de tirar os olhos de suas redes sociais para atendê-lo:
— William Crowley? Quarto 1609, certo? Está aqui sua chave, tenha uma ótima noite senhor, espero que aproveite nosso hotel – ela repetiu monotonamente o discurso programado em sua mente e voltou a olhar para seu smartphone.
“William” pegou sua chave e sua mala e se dirigiu ao elevador, dividindo-o com um senhor pálido de trajes escuros e com óculos de sol.
Sem trocarem uma única palavra, se separaram no primeiro andar, o andar de “William”, e o rapaz encontrou seu quarto ao final do corredor, à esquerda.
Foi então que William deixou de ser William e voltou a ser Fernando Baptista Júnior, o homem mais procurado do Brasil. Era naquele dia que teria sua namorada de volta, mesmo com todo mundo dizendo que ele a havia matado.
Trancou o quarto e começou a se preparar: faltavam mais de 2 horas para as 22:00, então havia tempo para que o ritual de evocação começasse.
Pegou a bolsa preta que trazia consigo e retirou de lá seus 5 catalisadores: um ovo de ferro banhado em cobre e prata; uma adaga enferrujada com inscrições em azul; um conjunto de dados de 100 lados cobertos de sangue seco; uma aliança de ouro partida ao meio e o crânio limpo e empalhado de um corvo.
Usando uma bússola, mediu o norte, e usando-o como ponto de referência, colocou o primeiro catalisador na ponta boreal, e os outros quatro de modo que se formassem 5 pontos equidistantes entre si. Com um giz, desenhou entre eles as linhas de um pentagrama.
Após isso, com uma faca cerimonial, foi repetindo as palavras que aprendera naquele dia.
Isso durou até às 22:00 em ponto, quando finalmente abriu os olhos e viu a criatura enevoada à sua frente.
Antes que qualquer coisa acontecesse, ele bradou:
— Guardião das correntes, prostre-se
E foi assim que grilhões da mais profunda escuridão prenderam e moldaram a forma da criatura, que aparecia claramente em sua frente sob a forma de uma criança de cabelos loiros bagunçados, cachecol, olhar maroto e roupas claras. Conhecia aquela forma, era o pequeno príncipe de Saint-Exupéry.
A criatura tomava várias formas, de acordo com o que o contratante imaginava ver. Era um mistério ainda qual o padrão de formas tomadas por “Aquele que Regride”, mas em toda a literatura, poucos bruxos haviam conseguido domá-lo sem sequelas.
— Está pronto para o procedimento, meu amo? – a voz da criança saiu distorcida em lábios fantasmagóricos, mas ainda era doce.
— Estou – respondeu simples, sem firulas.
— Não temos muito tempo, então começaremos com o primeiro trauma: o nascimento.
O ovo de ferro se levanta em meio-ar e se aproxima de Fernando.
Esse trauma ele já esperava superar. De fato, era correto dizer que já havia superado o fato de ter sido trazido ao mundo contra sua própria vontade, de ser forçado a tomar suas escolhas, a sofrer por elas e morrer por elas. Então o ovo nem mesmo chegou a se iluminar quando o brilho já havia se apagado, não há como lamentar o nascimento de um homem que já morreu há muito tempo.
Então o primeiro desafio foi cumprido.
— Muito bem, iremos para o próximo… – “Aquele que regride” passou para o próximo item: A adaga quebrada.
A paisagem do então hotel luxuoso e repleto de desenhos fantásticos se altera e Fernando se vê na rua de sua infância, com seu amigo Felipe.
Eles não sabiam naquela época, mas era a última vez em que se veriam.
Os pais de Felipe iam se mudar para a fronteira, sua mãe era oficial do exército, e Fernando nunca lhe disse adeus, para o seu primeiro amigo, o primeiro que lhe acolheu em toda sua vida.
Foi uma surpresa, havia reprimido aquela memória… mas ainda sim teve forças para continuar.
Abraçou as lembranças do amigo com força e as deixou ir dessa vez, se despedindo e não mais as guardando no fundo de sua alma.
O brilho da adaga se apaga, era o brilho da “falha”, da virilidade perdida por meio do problema em se comunicar. E também cai ao chão.
Em seguida, os dados com sangue seco se aproximam.
“O acidente”
Aquilo que muitos temem, mas poucos sabem como evitar. E menos ainda sabem que não se há como evitar: o medo da aleatoriedade do sofrimento, de que tudo pode dar errado a qualquer momento e nem sempre a culpa é sua.
Foi aquela vez que bateu o carro após o descuido de um motorista bêbado, havia quebrado algumas costelas e ficou manco, os dados que carregava em seu bolso para uma partida de RPG ficaram cobertos pelo seu próprio sangue.
Mas nada disso importava hoje, não tinha mais medo do acaso, ele era poderoso o suficiente para controlá-lo. Então o brilho dos dados se apagaram. Olhou para a criatura: não era mais o pequeno príncipe, era uma fera que babava e consumia seu desespero, um ser peludo e monstruoso, a cada vez que ele ganhava, a criatura também ganhava, mas no final, ele iria prevalecer.
A aliança partida começa a brilhar desta vez: Vitória, sua ex-mulher, havia o traído. A única pessoa que confiava naquela vida estava traindo-o com o seu próprio pai que abusou dele.
Aquilo foi o suficiente para fazê-lo cair em uma espiral de loucura e autossabotagem, quase se matou naquele ano. Mas ainda sim… tinha luz no fim do túnel, essa luz…
A lembrança dessa luz, a possibilidade de vê-la novamente o fez enfrentar esse trauma mais uma vez. A fera parecia decepcionada, mas sabia que o próximo trauma iria fazê-lo fraquejar.
A caveira de um corvo… “A Morte”.
Gabriela, sua namorada, a luz no fim do túnel. Aquela que a salvou de seu passado, e morreu devido ao seu erro. Ele havia tentado esse ritual uma vez antes, iria transformá-los em imortais para se amarem para sempre, mas… Lágrimas saíram de seus olhos. “A arrogância traz a queda” ele estava preparado?
A fera avança, as cortinas se fecham.
Epílogo:
Lis é o nome dessa ave, é o que sobrou naquele quarto de hotel.
“Aquele que Regride” estava morto, era seu ódio acumulado, tudo que sofrera.
Aquilo era a ressurreição que queria? Ele queria ressuscitar ela… queria a Gabriela.
Mas agora ele era Lis.
Voou pela janela.
E observando todos caminhando calmamente nas ruas, vários metros abaixo dele, Lis se irrompeu em chamas azuis, e, assim como todo seu rancor, se foi para sempre. Foi morar puro no alto, talvez, só talvez, ao lado dela.