Todo mundo precisa de alguém que possa confiar, ainda mais após um acidente que o deixou debilitado e precisando de cuidados extras. Lucas Leão não tinha alguém assim, afinal, sempre foi um cara que preferia a solidão e a retidão que a multidão e a esbórnia.
Talvez fosse por ter percebido isso que a garota com quem estava saindo há algumas semanas tivesse oferecido tomar conta dele até melhorar.
Lavínia Melo era uma garota mais jovem, ainda estava na faculdade, cursando engenharia química, enquanto Lucas, embora não fosse tão mais velho assim, já havia se formado e agora trabalhava como veterinário em uma clínica da cidade de Santos.
Como seu apartamento era pequeno e não tinha elevador, para que pudesse subir com cadeira de rodas, ele aceitou o generoso convite para que se mudasse temporariamente para a casa de Lavínia, que embora não fosse também tão luxuosa, era bem melhor que sua kitnet bagunçada do centro da cidade.
Era uma situação constrangedora para Lucas, não gostava de ser servido ou que o tratassem de maneira especial, mas seu quadril ainda não havia sarado, e ele mal podia andar, então tinha que engolir seu orgulho quando Lavínia lhe carregava para cima e abaixo em sua cadeira de rodas.
Não havia muitas horas que ele havia se acomodado na casa: tinha um quarto para ambos, que parecia apertado agora que a moça colocara uma segunda cama de solteiro para simular uma de casal; a casa também continha um banheiro espaçoso, uma despensa, uma cozinha e uma sala de estar com uma grande TV que a moça dizia ter ganhado em um bingo.
Mas desde que chegou, Lucas estava apreensivo: conhecera Lavínia no tinder, haviam saído apenas algumas vezes, de fato, mas sempre conversavam pelas redes sociais, ela era uma boa garota, esforçada e trabalhadora.
Mas ficar sozinho na casa dela enquanto ela estava na faculdade era realmente desconfortável.
Ele estava sentado na poltrona confortável que ficava na sala de estar. Esticou o braço e, com esforço, conseguiu pegar o controle remoto da TV e a ligou, sintonizando em um serviço de streaming para assistir uma série que seus colegas de trabalho lhe indicaram. Era um thriller de terror bem feito e com orçamento elevado, sobre uma garota que namorava um cara possuído pelo demônio, e tinha que se esconder dele durante a noite.
Era interessante, mas Lucas não acreditava em demônios, era ateu e cético. Então a experiência era diferente para ele: via a série como uma maneira de se entreter, sem realmente sentir apreensão ou medo pelos personagens. Sabia que, para alguém nascido em família cristã, a série seria bem assustadora, pois o temor do Diabo e de seus demônios estava incrustado em suas almas desde a infância. Mas não teve uma criação religiosa, a palavra “demônio” soava tão bobagem para ele quanto a palavra “vampiro” ou “lobisomem”.
Quando percebeu, já eram quase 21 horas da noite, havia quase assistido a série toda durante a tarde. E estranhou o fato de Lavínia ainda não ter voltado da faculdade.
A aula dela acabava às 19 horas.
Preocupado, mandou uma mensagem em seu celular:
“Lavi, está bem? Ainda está na faculdade?
Teve algum imprevisto?”
No mesmo instante que mandou a mensagem, a notificação de visualizada apareceu. Ela viu a mensagem ao menos.
Mas nenhuma resposta.
2 minutos…
5 minutos…
7 minutos…
10 minutos…
Ele ficou apreensivo, e mandou um ponto de interrogação, que logo foi visualizado também.
Mais cinco minutos se passaram, e antes que ele ficasse mais ansioso, ouviu alguém adentrar a porta.
A poltrona estava virada de frente para a TV, o que fazia com que ele ficasse de costas para a entrada. Percebeu que os passos delicados que adentraram a residência eram de uma moça, muito provavelmente.
— Lavi? É você?
Alguns segundos de silêncio.
— Sim. Vou só passar no banheiro antes, preciso me banhar. Precisa de algo? Conseguiu usar o banheiro quando foi necessário? – a voz de Lavínia respondeu parecendo apressada na cozinha.
Alívio…
— Ah, tudo bem, vai lá. Estava preocupado com sua demora, achei que tinha acontecido algo. E você não me respondeu também – desligou a TV e tentou se levantar, ainda com dificuldade, mas conseguiu dar alguns passos, o suficiente para ver a silhueta da moça entrando no banheiro – consegui ir no banheiro sim, mas a mobilidade ainda está terrível. Vai precisar de algo?
— Não, tá tudo bem – a voz dela estava abafada no box, e pôde ouvir a água escorrendo pelo seu corpo nu enquanto ligava o chuveiro – já já faço uma jantinha, tá bom?
— Claro, Lavi, perdão por incomodar.
— Imagina! Gosto de sua companhia.
Com esforço, Lucas girou os pés para voltar para a poltrona. Como já estava de noite, e ele não queria se levantar para acender as luzes, a casa estava bem escura, e isso foi o suficiente para ele não perceber que tinha pisado em algo molhado.
Em instantes, soltou o ar enquanto sua perna debilitada escorregava na superfície molhada e viu o mundo girar em quase 180⁰ ao bater as costas no chão. Seu grito abafado saiu como um espasmo curto de dor quando o seu quadril fraturado sentiu o chão duro da sala.
As lágrimas chegaram aos seus olhos com velocidade, mas a dor lancinante se atrasou, crescendo implacavelmente enquanto agonizava no chão. As vistas, já escuras devido a falta de luz, ficaram ainda mais sombrias, e ele apagou.
Abriu os olhos novamente, estava deitado em um líquido pegajoso, não sabia o que era, mas imaginou, por alguns instantes, que era seu próprio sangue.
Tocou o líquido misterioso com a ponta dos dedos, tentando discernir o que era. Cheirou-o, levando os dedos molhados ao nariz, tinha cheiro de ferro. De fato, era sangue.
Mas não era o seu, tocou seu corpo para conferir, não tinha nada exposto ou ferida que vertia do líquido viscoso e rubro.
Ainda confuso, tentou lembrar de onde tinha vindo o sangue, não conseguiu. Seria de Lavínia? Por isso ela correu para o banheiro? Ela estava bem?
Ainda ouvia o barulho do chuveiro ligado, mas ele não parecia tocar em nada antes de chegar ao chão. O som era constante e ininterrupto.
— Lavi, você está aí? Está machucada? Tem sangue aqui na sala. Aconteceu algo?
Silêncio.
Sentiu o celular vibrar algumas vezes. Abriu a tela e viu as notificações: 17 ligações perdidas de Carlos, o colega de Lavínia que lhe dava carona.
Tentou retornar, mas pareciam estar tentando ligar um para o outro ao mesmo tempo. Tinha algo errado, ele estava apreensivo.
Com o canto do olho olhou mais uma notificação do aplicativo de mensagem:
“Me perdoa, eu não vi ele vindo”
Era uma mensagem de Carlos.
Tinham várias mensagens, ele abriu e começou a ler algumas:
“Meu Deus, estou desesperado”
“Não sei o que fazer, foi muito rápido “
“Ela não tá respirando”
“Já chamei a ambulância, eles estão demorando”
“Foi no campus”
“Não vi o caminhão, o carro tá detonado”
“Meu Deus, acho que ela tá morta”
“Me perdoe”
E tinha a foto de um carro na galeria de mensagem. Um carro tão amassado e irreconhecível que parecia impossível que alguém lá dentro houvesse sobrevivido. Era o carro de Carlos.
Com o coração pesado e aflito, atendeu a ligação:
— Carlos, alô? O que aconteceu?
A voz do outro lado era quase irreconhecível, de tão chorosa, parecia balbuciar e cuspir palavras sem sentido:
— Eu não vi, eu não vi. Estava distraído…
Repetia sem parar.
— Carlos, acalme-se – disse isso e praguejou mentalmente quando viu a notificação de que seu celular estava com 5% de bateria – me diga, pausadamente, o que aconteceu? Onde você está?
— A gente tava voltando cara… – ele soluçou e deu uma pausa – aqui no campus, sabe? Aquele cruzamento na avenida – soluços maiores – quando fui passar, um caminhão… no sinal vermelho – começou a chorar copiosamente.
— Um caminhão? Você está bem?
— Eu tô… tô no hospital, quebrei algumas costelas – continuou chorando – mas a Lavi, a Lavi… – começou a chorar muito de novo.
— Carlos, ela tá bem, ela acabou de…
— A Lavi morreu na hora cara… o caminhão bateu do lado dela… eu vi tudo, o pescoço…
— Como? QUE? – estava em choque, era uma pegadinha?
— Quando os enfermeiros chegaram, ela já tinha…
— Cara, como assim? Ela tá aqui em.casa comigo, está no banho…
Silêncio.
Olhou para o celular, a bateria havia acabado.
“Merda” praguejou, o carregador estava em cima da mesa.
Tentou se levantar, mas não conseguiu, a dor no quadril era imensa. Se arrastando em direção à mesa, tentou alcançar o carregador, usando os braços para se locomover.
Arrastou-se, o sangue no chão deixou tudo mais fácil, mas não conseguia alcançar o carregador em cima da mesa, estava alto.
Tentou se firmar, mas uma dor excruciante lhe avisou que não era uma boa ideia.
— Lavi, você tá aí, né? É uma pegadinha? Se for, não tem graça, está doendo muito e estou preocupado de verdade.
Silêncio, o chuveiro desligou.
— Pegadinha? Do que tá falando? – a voz dela parecia tranquila, apesar de abafada.
— Do acidente, igual o meu, que tive alguns meses atrás, do sangue na sala, do Carlos… se isso for uma piada, não tem graça.
Silêncio, ouviu o box abrindo e seus delicados pés saírem dele.
5 minutos se passaram sem resposta.
O secador ligou e começou a trabalhar.
— LAVÍNIA! É sério, eu preciso de ajuda!
Mais 10 minutos até o secador desligar, o coração dele estava saindo pela boca, o sangue do chão parecia subir pela sua pele e puxá-lo para baixo.
“É isso, não sei o que tá acontecendo, mas não vou ficar aqui” lentamente, passou a rastejar na direção da porta, iria achar ajuda lá fora.
Rastejou, deixando um rastro de sangue por onde passava, com um esforço colossal nos braços, mal sentia a dor das pernas e costas devido a alta dose de adrenalina. O som de passos descalços e delicados saindo do banheiro o deixou alerta. Mas os passos estavam indo na direção contrária, até o quarto, em que a porta fechou quase silenciosamente. Isso fez com que ele relaxasse um pouco, mas continuou: faltavam uns 5 minutos para chegar na porta, que estava entreaberta, viu a luz dos postes do lado de fora iluminarem seu rosto como se fosse uma salvação divina.
Finalmente chegou a porta, estava livre… abriu ela movimentando a cabeça e a empurrando para fora. Ele viu o jardim que tinha que atravessar: era curto, mas o caminho era de cascalho, doeria um pouco.
Suspirou e começou a rastejar no cascalho, procurando algum sinal de vida no lado de fora. Era um bairro afastado, quase desértico, mas tinha que ter alguém ali.
Ouviu, com desespero, a porta do quarto de Lavínia se abrir, alguns passos – agora com sapato – pisando no assoalho de madeira da sala de maneira calma.
Apertou o passo, seu queixo sangrava e estava em carne viva, de tanto arrastar no cascalho.
Sentiu os passos lá dentro se apressarem em direção à porta da casa, ela estava chegando perto.
Com todo o ar de seus pulmões, gritou:
— Socorro! Alguém! Por favor!
O silêncio da noite foi sua resposta.
Ouviu a porta batendo atrás dele e o som de sapato no cascalho se aproximando devagar.
— Sai de perto, quem é você? Sai, sai! – berrava em desespero.
— Lucas, acalma, sou eu, Lavínia.
A voz familiar quase fez com que ele hesitasse, mas algo fez com que ele gelasse: um dos postes de luz estava logo acima dele, e a garota estava perto de seus pés… mas nenhuma sombra tinha se formado.
Tentou olhar para trás, mas seu queixo estava tão ferido, que só escorregou em seu próprio sangue e tombou de lado.
— Vamos Lucas, vamos voltar, vou cuidar direitinho de você agora, não vou mais te abandonar, ok?
Choramingando, se debateu para tentar olhar para trás, mas um toque de uma mão delicada e pequena o fez parar. Quase se acalmou, mas a mão estava muito gelada.
— Por Favor, me deixa – Lucas gemeu.
— Vamos ficar juntos agora… para sempre.
Fechou os olhos quando a mão tocou sua bochecha, e essa foi a última coisa que ele se lembra.
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